Ensaios com HIPOT e o risco de choque elétrico fatal pouco conhecido pela maioria dos profissionais – Um Caso Real
Hipot ou Hi-Pot é uma abreviatura de “High Potential” ou “Hight Voltage Testing”, um teste realizado em alta tensão. Normalmente o Hipot é um instrumento portátil usado para realizar ensaios de tensão aplicada em corrente contínua visando verificar a isolação em cabos, capacitores e isoladores em geral.
O principal objetivo desse texto é chamar a atenção dos gestores e profissionais da área elétrica para os riscos de um choque elétrico com potencial de fatalidade em ensaios realizados com o Hipot e que em grande parte são desprezados ou mesmo desconhecidos pela maioria desses profissionais.
Não existe maior dificuldade para os gestores que se comprometem com a prevenção de acidentes de suas equipes do que o desconhecimento dos riscos envolvidos em possíveis contatos acidentais com energias armazenadas ou residuais em tarefas e atividades industriais dos seus profissionais.
Basta uma procura rápida na internet sobre acidentes com o Hipot que serão encontrados vários relatos e investigações sobre acidentes ocorridos com esse instrumento em todo mundo, e eles são muito mais comuns que imaginamos.
Relato de um acidente com o Hipot:
Eletricista de uma empresa de comissionamento realizava testes de isolamento em redes de distribuição recém-construídas quando sofreu um choque elétrico de alto potencial de fatalidade ao manusear um Hipot durante a realização de ensaios em uma LDI 13,8 kV de 2.700 m de comprimento estando sobre uma plataforma elevatória não isolada, logo após ter finalizado exatamente os mesmos testes em uma rede com as mesmas características e nas mesmas condições sem qualquer incidente, porém essa outra rede possuía apenas 200 m de comprimento.
Este acidente em particular nos proporciona um grande aprendizado em função de todas as condições dos testes, relatos, informações técnicas e medições realizadas após o acidente para entendermos o porquê, o como e o que de fato teria ocorrido com o eletricista.
O relatório médico confirmou que o choque elétrico sofrido pelo eletricista teve alto potencial de fatalidade, informando que o acidentado chegou ao hospital com PCR (Parada Cardiorrespiratória) decorrente de descarga elétrica, destacando que ocorreu fibrilação atrial, revertida com cardioversão ainda no local do acidente pela equipe de emergência, além dos exames laboratoriais comprovarem que ocorreu aumento da CK total, CKMB e Troponinas do acidentado, o que normalmente acontece com pessoas que recebem uma descarga elétrica.
Sabemos que o choque elétrico pode apresentar várias consequências diretas ou indiretas ao organismo humano e estas variam muito dependendo da situação e das condições em geral, porém os fatores mais relevantes à gravidade do choque e suas consequências são: a intensidade e a natureza da corrente elétrica; a tensão elétrica; o tempo de exposição ao choque; o caminho percorrido pela corrente no corpo e o estado de umidade do organismo.
Entendendo o acidente:
O eletricista e um ajudante realizavam ensaio de tensão aplicada com o Hipot em cabos blindados de uma rede aérea isolada recém-construída e não energizada, posicionados sobre uma plataforma elevatória não isolada conforme mostrado abaixo nas fotos das figuras 1 e 2.
Fig.1 – Plataforma Elevatória sob a rede Fig. 2 – Simulação da Posição do Eletricista
O teste consistia em conectar as garras do Hipot no cabo isolado da rede, aumentar gradualmente a tensão contínua aplicada ao cabo de 0 até 19 kV, aguardar entre 01 e 02 minutos para verificação de possível corrente de fuga, anotar os valores e reduzir gradualmente a tensão aplicada até “Zero”, desligar o Hipot conforme indicava o manual do equipamento e desconectar as garras do Hipot. O eletricista realizou o teste com o mesmo procedimento nos 3 cabos da rede de 200 metros de comprimento sem nenhum incidente. Ao realizar o mesmo procedimento no primeiro cabo da rede de 2.700 metros, ao desconectar a garra do Hipot do cabo testado, seu ajudante ouve um forte estalo e um grito do eletricista que cai desacordado na plataforma.
A análise técnica desse acidente deve ser dividida em duas partes: 1) Instruções e princípios básicos de segurança que não foram seguidos e que contribuíram significativamente para a ocorrência do acidente, e que se fossem respeitadas, o acidente teria sido evitado ou as consequências reduzidas e 2) Análise das grandezas elétricas envolvidas e que levaram o profissional a ser submetido a uma descarga elétrica com potencial de fatalidade, além de explicar o porquê o choque elétrico ocorreu somente quando se testou o primeiro cabo de 2.700 metros, e não nos testes dos 03 cabos anteriores de 200 metros e que foram submetidos ao mesmo padrão de teste.
1) Instruções e princípios básicos de segurança não seguidos.
- a) O eletricista não utilizava EPIs adequados como luvas para trabalhos em média tensão.
- b) O eletricista não realizou o procedimento de “curto-circuitar a alta tensão a terra antes de desconectar a amostra sob teste” conforme recomendado e grifado como “Importante” no Manual de Instruções do Fabricante do equipamento utilizado: INSTRUMPTEMP–HIPOT/60KV/CC–5 mA.
- c) O eletricista não foi treinado na NBR 6881 que detalha o Ensaio de Tensão Aplicada, não tinha um procedimento especifico detalhando a sequencia do ensaio e desconhecia o risco de tensão residual nos cabos blindados da rede após os ensaios.
- d) Utilizou uma plataforma elevatória não isolada, equipamento inadequado para trabalho em atividades com sistemas/equipamentos/componentes elétricos, conforme sinalizado através de adesivos bem visíveis em toda a estrutura da plataforma elevatória e em seu manual de operação.
2) Medições e cálculos das grandezas elétricas envolvidas.
- a) A medição da Isolação da plataforma elevatória em relação à terra com um megômetro calibrado indicou 7 KΩ.
- b) A medição da tensão residual nos cabos de 2,7 Km após aplicação de 19 kV e desligamento do equipamento de teste exatamente conforme ocorrido durante o acidente mostrou uma tensão residual inicial de 16 KV em lenta descendência.
- c) Representação dos dados e circuito elétrico no momento da descarga do acidente:
Fig. 3 – Representação do acidente.
d) Dados do cabo blindado utilizado na rede de distribuição aérea de 13,8 kV:
Cabo FIPEX WTR MULTIPLEX 3x1x50 + 1×50 mm² 8,7/15 kV / XC = 9.397 Ω.Km
Resistência de Isolação Ro: Valor medido nos testes de isolação dos cabos em torno de 8GΩ
e) Capacitância Co do Cabo: Conforme dados técnicos do fabricante a reatância capacitiva do cabo é XC = 9.397 Ω.Km, portanto as capacitâncias das redes de 200 metros e 2.700 metros são respectivamente: Co (0,2 Km) = 0,0565 µF e Co (2,7 Km) = 0,7621 µF.
f) Circuito equivalente de teste e carregamento do cabo com 19 kV:
Fig. 4 – Circuito representando o carregamento do capacitor do cabo blindado.
g) Circuito equivalente de descarga com 16 kV logo após o desligamento do Hipot:
Fig. 5 – Circuito representando a descarga sobre o eletricista.
h) Cálculo das correntes de descarga capacitiva dos cabos das redes de 2,7Km e 0,2 Km com simulações de quatro hipóteses variando da melhor condição de resistência do eletricista 1.500Ω para a pior condição de 500Ω no momento do acidente, visto que provavelmente o circuito se fechou pela mão do eletricista e seu cinto de segurança ancorado na plataforma.
Considerando o circuito em série de descarga formado pelo capacitor Co do cabo blindado e resistência total Rt sendo a Resistência do Eletricista + Resistência da Plataforma temos:
(valor RMS da corrente para o conjunto N de Id no tempo total do choque)
Conclusão:
A partir dos valores simulados dos tempos de choque elétrico para cada uma das hipóteses, podemos calcular o limite máximo permissível e aceitável de corrente elétrica para que não ocorra a fibrilação durante o tempo de choque para cada uma das hipóteses através da expressão de Charles Dalziel que é I (choque) = 116/√t e comparar com a corrente eficaz (RMS) calculada para o tempo de duração do choque elétrico.
Os valores das correntes de choque RMS para o cabo de 2,7 Km tanto para a mínima quanto para a máxima resistência do eletricista indicam um choque elétrico com alto risco de fibrilação e fatalidade, diferentemente das correntes para o cabo de 0,2 Km.
A curva “Tempo x Corrente de choque” mostrada na Fig.10 abaixo e que é uma das melhores tentativas de se relacionar a corrente elétrica com o tempo de choque e os efeitos no corpo humano, confirma que o choque elétrico sofrido pelo eletricista no ensaio do cabo de 2,7 Km (ponto vermelho no gráfico) se encontra no início da Zona 4, onde existe a probabilidade de fibrilação em mais de 50% das pessoas.
Já o ensaio e testes no cabo de 200 m (pontos azuis no gráfico) em função da baixa capacitância do cabo e consequentes correntes e tempo de choque, se encontra na Zona 2, geralmente sem nenhum efeito perigoso para o corpo humano, explicando o porque nos primeiros testes, o eletricista não percebeu o risco fatal que correria no teste da rede de 2,7 Km.
O quadro resumo de Kindermann e Campagnolo da Fig. 11 também mostra que correntes contínuas acima de 300 mA como ocorridas nesse acidente podem provocar reações e consequências graves como a asfixia, fibrilação e morte aparente.
Este acidente nos proporciona um grande aprendizado, pois ficou demonstrado que após finalizarmos um teste de tensão aplicada, devemos realizar um procedimento de desenergização de forma minuciosa do elemento ensaiado, seja ele um capacitor ou um cabo blindado como no caso desse acidente, nos preocupando com o aterramento correto e com o tempo necessário para a descarga completa da tensão residual, pois é possível que ela seja alta o suficiente para causar um acidente fatal após o desligamento do Hipot.
Processos de desenergização como esse são realizados com muita frequência nos ensaios de tensão aplicada e apesar disso, não são totalmente descritos ou detalhados nas normas e manuais dos equipamentos.
Em função disso, é fundamental que seja realizado o gerenciamento do risco desses ensaios iniciando com um planejamento detalhado para que a execução do ensaio de tensão aplicada seja bem sucedida, sem imprevistos ou acidentes. Iniciando com a escolha de profissionais qualificados para a realização do ensaio e cientes do risco, utilizando todos os equipamentos de proteção individual para trabalhos em média tensão, seguindo todas as normas e procedimentos de segurança e principalmente avaliando para os níveis de tensão que serão aplicados no teste, quais as capacitâncias envolvidas, sejam em capacitores ou em cabos blindados e seus respectivos comprimentos, calculando o tempo necessário para a descarga para níveis seguros das tensões residuais.
A partir desse acidente e análise que comprova o risco de um choque elétrico fatal por tensões residuais, talvez seja possível desenvolver procedimentos e soluções mais detalhadas e seguras para os ensaios com o Hipot, eliminando a exposição desnecessária dos trabalhadores a um risco de choque elétrico fatal.
“Assim como o pássaro em cima de um fio de alta tensão, o corpo humano é imune a choques elétricos, desde que ele não faça parte do circuito elétrico. Normas e práticas de segurança protegem contra essa contingência, mas a sua eficácia varia de acordo com a vulnerabilidade do ambiente e do indivíduo”. Charles Dalziel.
Referencias Bibliográficas:
Aterramento Elétrico. 3. Edição, por KINDERMANN, Geraldo; CAMPAGNOLO, Jorge Mário, Porto Alegre: Sagra-DC Luzzatto. https://drive.google.com/file/d/0B_1jBWo9e-XEWnpTZmw2eW1RWGFGTHhsajlKc0hfdw/view?pref=2&pli=1
The Effects of Electric Shock on Man, by Dalziel, Charles Francis, Washington, D.C. : U.S. Atomic Energy Commission, Office of Health and Safety, 1956. Series: Safety and fire protection technical bulletin; no. 7.
Estudo do comportamento das tensões residuais em cabos blindados de média tensão após a realização de ensaio de tensão aplicada. Trabalho de conclusão de curso UTFPR, Curitiba 2011, por Karine Kou Suzuki, Patrick Carlos Kondlatsch e Tchesley Schmidt Gomes. http://repositorio.roca.utfpr.edu.br/jspui/bitstream/1/328/1/CT_COELE_2011_2_09.pdf
Dados técnicos do acidente, fornecidos pela empresa envolvida, porém por motivo de confidencialidade da empresa e funcionário envolvido no acidente, não serão divulgadas as fontes.
Anexos:
Registro das medições e Cálculo das hipóteses:
- a) Medição da Isolação da plataforma elevatória em relação à terra com um megômetro calibrado indicou 7 KΩ – conforme fotos abaixo:
b) Medição da tensão residual nos cabos de 2,7 Km, após aplicação de 19 kV, mostrando tensão residual de 16 KV em descendência, logo após o desligamento do equipamento de teste conforme ocorrido durante o acidente.
c) Dados do cabo blindado utilizado na rede de distribuição aérea de 13,8 kV:
Cabo FIPEX WTR MULTIPLEX 3x1x50 + 1×50 mm² 8,7/15 kV
Resistência de Isolação Ro: Valor medido nos testes de isolação dos cabos em torno de 8GΩ.
As resistências elétricas do condutor foram desconsideradas nos cálculos em função dos baixos valores para as distâncias das duas redes.
d) Cálculo da Capacitância Co do Cabo:
Conforme dados técnicos do fabricante a reatância capacitiva do cabo XC = 9.397 Ω.Km, portanto podemos calcular as capacitâncias das redes de 200 metros e 2.700 metros conforme abaixo:
e) A simulação para os valores de corrente ao longo do tempo pode ser realizada no excel utilizando a formula de corrente para a descarga de um capacitor sobre uma resistência conforme o circuito de descarga abaixo:
A partir dos valores calculados de corrente Id para cada milissegundo, podemos calcular o valor da corrente RMS (Root Mean Square) que é a raiz quadrada das médias dos quadrados.
Id (RMS) = (valor RMS da corrente para o conjunto N de Id no tempo total do choque)
(valor RMS da corrente para o conjunto N de Id no tempo total do choque)
f) Hipótese 1: Cabo de 2,7 Km com Rt = 7.5 KΩ (Eletricista + Isolação Plataforma)
g) Hipótese 2: Cabo de 2,7 Km com Rt = 8.5 KΩ (Eletricista + Isolação Plataforma)
h) Hipótese 3 – Cabo de 0,2 Km com Rt = 7.5 KΩ (Eletricista + Isolação Plataforma)
i) Hipótese 4 – Cabo de 0,2 Km com Rt = 8.5 KΩ (Eletricista + Isolação Plataforma)